Brasil-Debate. Sobre o conceito de stalinismo na obra Slavoj Žižek
O título desse texto foi criticado: ‘Slavo Zizek e a ascensão do stalinismo no Brasil, por Fábio de Oliveira Ribeiro‘, por isso resolvi voltar ao assunto.
“… quem é obcecado por complôs é o líder moderno. É por isso que a fórmula perfeita do stalinismo, sistema da hermenêutica paranóica permanente, é ‘governar é interpretar’”. (Mitologia, Loucura e Riso – A subjetividade no idealismo alemão, Markus Gabriel e Slavoj Žižek, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p. 19).
Segundo Žižek, o stalinismo se caracterizaria, portanto, pela paranóia do controle absoluto. O Estado não vigia aquilo que o cidadão diz, mas também o que ele pensa. Os stalinistas acreditam que pensar é muito perigoso, algo potencialmente contra-revolucionário. A permanência da revolução demanda não só obediência, mas principalmente a crença de que o stalinismo é o único regime político capaz de proporcionar a felicidade. A infelicidade decorrente da repressão seria, assim, um dano colateral que deve ser aceito e tolerado por todos os cidadãos queiram ou não.
Quando governar é interpretar, a linguagem assume uma dimensão quase mística. Ela não é apenas um instrumento de comunicação. Ela é o local onde a sedição se instala. É através dela que a desobediência se espalha. Controlar a linguagem supõe não somente reprimir o que é dito, mas principalmente o que o cidadão diz para si mesmo. O crime de opinião é, portanto, um corolário do stalinismo. No limite, o Direito Penal stalinista permite a a criação de «regras de engajamento flexíveis» e a punição de «intenções hostis» como deseja o general Augusto Heleno.
Em outra outra de sua autoria, Žižek retoma essa questão explicando as diferenças entre o antigo stalinismo e aquele que pretende se impor na atualidade:
“…com exceção do auge dos expurgos stalinistas, quando de fato todos podiam ser considerados culpados, agora todos realmente sabem quando estão fazendo algo que incomoda aos que estão no poder. A função de proibir as proibições, portanto, não é dar origem a medos ‘irracionais’, mas deixar os potenciais dissidentes (os que acham que podem continuar a atividade crítica, já que não estão desrespeitando nenhuma lei, apenas fazendo o que a lei lhes garante – liberdade de opinião, etc.) saberem que, se irritarem demais os que estão no poder, podem ser punidos segundo o capricho destes: ‘Não nos provoque, podemos fazer o que quisermos com você, aqui nenhuma lei o protege!’. Na ex-Iugoslávia, o infame art. 133 do Código Penal sempre podia ser invocado para processar escritores e jornalistas. Ele criminalizava qualquer texto que apresentasse incorretamente as realização da revolução socialista ou pudesse provocar tensão e descontentamento público em virtude da forma como tratasse tópicos políticos, sociais e outros. É óbvio que esta última categoria não só é infinitamente plástica como convenientemente autorreferente: o próprio fato de alguém ser acusado pelos que estão no poder não deixa óbvio que [ele] ‘provocou tensão e descontentamento público’? Naqueles anos lembro-me de ter perguntado a um político esloveno como ele justificava essa lei. Ele apenas sorriu e, com uma piscadela, disse: ‘Ora, precisamos ter alguma ferramenta para, quando quisermos, impor disciplina àqueles que nos incomodam…’ ” (Em defesa das causas perdidas, Slavoj Žižek, Boitempo editorial, São Paulo, 2011, p. 208)
Extremamente didático, esse fragmento expõe como o stalinismo se expande publicamente mediante a negação do Direito tal como nós o conhecemos. Num Estado de Direito, o cidadão não precisa ter medo de pensar e de se manifestar, pois ele sabe que poderá opor seu direito à liberdade de consciência e de expressão a qualquer um que deseje controlar o debate público. Num Estado stalinista, aqueles que exercem o poder criam normas para possibilitar a censura. Sendo o crime de mera conduta (provocar tensão e descontentamento público, como constava no art. 133 do Código Penal da Iugoslávia) a acusação equivalia à prova do crime, razão pela qual a condenação poderia ser imposta por mera convicção.
Lula foi denunciado porque Deltan Delagnol estava convicto de que ele havia cometido o crime que lhe foi imputado. A convicção fundamentou a condenação, pois Sérgio Moro deu mais valor ao PowerPoint de Delagnol do que à certidão do cartório provando que o Triplex pertence à construtora. O TRF-4 validou essa condenação. Portanto, me parece que já estamos vivendo num Estado stalinista. A aprovação de uma Lei para punir severamente as Fake News apenas e tão somente aprofundará a natureza totalitária do novo regime, colocando nas mãos dos novos donos do poder uma ferramenta para, quando quiserem, impor disciplina àqueles que os incomodarem.
“…somente no stalinismo as pessoas são escravizadas em nome da ideologia que afirma que todo poder é delas. A primeira coisa que nos espanta no discurso stalinista é sua natureza contagiante: a maneira como (quase) todo mundo gosta de imitá-lo zombeteiramente, usar seus termos em contextos políticos diferentes, etc., em contraste óbvio com o fascismo. Mas isso não é tudo: na última década, assistimos, na maioria dos países pós-comunistas, a um processo de invenção de uma tradição comunista.” (A visão em paralaxe, Slavoj Žižek, Boitempo editorial, São Paulo, 2008, p. 382)
No Brasil pós-golpe de 2016, o discurso jurídico e democrático é zombeteiramente utilizado por jornalistas, políticos e até juristas comprometidos com a escravização do povo pelo neoliberalismo. Dilma Rousseff foi deposta por ter cometido o crime de dar “pedaladas fiscais”, mas as “pedaladas fiscais” dadas por Michel Temer (antes e depois do golpe) são discursivamente legitimadas como se fossem necessárias e até desejadas.
A presidenta do STF age de maneira imoral (Carmem Lúcia recebeu em reunião privada o presidente que está sendo criminalmente investigado), mas isso foi descrito por alguns jornalistas como se fosse absolutamente natural. No limite os ideólogos do stalinismo canarinho dizem que o princípio da moralidade foi respeitado, pois o usurpador ainda não existe uma sentença condenatória imutável contra Michel Temer. Defendida no caso usurpador, a presunção de inocência é ferozmente atacada quando Lula entra na discussão. No caso dele, nem mesmo o advogado que ele contratou deve ser recebido no recinto do Tribunal pela presidente do STF.
Há dois anos a democracia eletiva perdeu seu conteúdo, pois o plano de governo imposto à nação (com o uso do poder que é do povo) foi derrotado nas eleições. O vice-presidente não traiu apenas Dilma Rousseff, ele traiu inclusive e principalmente os eleitores que votaram no programa desenvolvimentista inclusivo do PT. Mesmo assim, os juristas, jornalistas e políticos golpistas insistem que não estamos vivendo numa tirania, ou seja, sob um governo cujo programa não foi aprovado nas eleições e sim escolhido apenas por aqueles que assaltaram o poder.
Não por acaso a “tradição democrática” do golpe de 2016 se afirma mediante a referência constante à “revolução de 1964”. A negação real da democracia nos dois momentos foram unidas para se impor sob uma retórica que se apropria do discurso democrático e o utiliza de maneira contagiante. O golpe de 1964 novamente virou “revolução”, para que o golpe de 2016 seja nomeado como “processo de impedimento”.
“O abismo de Žižek pode ser mais bem compreendido em termos da noção lacaniana paradoxal de que as proibições e desejos reais são camuflados e expressos por fantasias licenciosas. No tempo de Stalin, explica ele, não apenas era proibido criticar Stalin como também era proibido admitir publicamente que você não tinha a permissão de criticar Stalin. As regras reais eram ocultas pela aparente liberdade e pela expectativa de que você pudesse não querer quebrá-las de modo algum. O poder funciona nessas formas estranhas e insidiosas, afirma ele, e por isso algumas vezes pode ser derrubado.” (Slavoj Žižek – por Jennifer Wallace, in Previsões – 30 grandes pensadores investigam o futuro, Record, Rio de Janeiro – São Paulo, 2001, p. 437)
No Brasil pós-golpe de 2016 a Constituição Federal supostamente continua em vigor, mas o que legitima o regime são as exceções. Os desvios discursivos se encarregam de disfarçar os abusos políticos. Mas não só isso. Eles também irão legitimar as perseguições policiais como se o art. 133 do Código Penal da Iugoslávia já estivesse em vigor no Brasil. Quem ousar revelar a natureza desviante do novo regime (como aquele professor da UFBA) ou será processado pelo CNJ (caso dos juízes que publicamente se colocaram contra o golpe). Eu mesmo já fui incomodado pelo novo DOPS federal.
Com estas considerações dou por encerrado o debate que foi levantado pelos comentaristas. O título que escolhi não está errado, pois se levarmos em conta a obra de Slavoj Žižek é perfeitamente possível falar na ascensão do stalinismo no Brasil.
Fábio de Oliveira Ribeiro
Fotoarte: “Conversa ao pé do ouvido”