Brasil-Debate. Apontamentos para a memória do PCB
«Acredito que muito mais motivos tenho eu próprio para registrar erros e deficiências que se apresentaram em meu trabalho»
No começo de 2015, concedi uma entrevista a companheiros de Opera Mundi e da editora Alameda. Foi uma conversa informal, não marcada previamente, durante uma visita à editora. Foi concedida como um subsídio para uma pesquisa ainda em andamento, e que só foi tornada pública mais de um ano depois.
Diante do que disse nessas condições, e após a publicação dos três vídeos gravados durante a conversa, que resultaram em polêmicas com antigos e atuais companheiros de luta, gostaria de fazer alguns esclarecimentos.
Abordei na conversa questões extremamente importantes e delicadas da vida do Partido e da minha pessoal. Tendo sido longas entrevistas de improviso, com perguntas não combinadas previamente, é perfeitamente compreensível e desejável, que ao fim delas, haja um pequeno texto, precisando alguns conceitos complexos e delicados, abordados só de passagem nos marcos de respostas rápidas. Isto é ainda mais necessário por serem questões nunca ditas em público, e com repercussões na vida de hoje, e com opositores também atuais.
Foi audacioso tratar tantos temas complexos e polêmicos. Não me arrependo; o positivo excedeu em muito as insuficiências. Se houve algum erro, foi exclusivamente meu.
Vamos então aos meus comentários, acréscimos e pequenas correções de informação, que, a meu ver, reforçam a qualidade da conversa.
- Antes de iniciar a operação de resgate de Giocondo Dias, e sem indicar como a faria, consultei ao companheiro Luís Carlos Prestes. Ele disse que sim, mas comentou que já tínhamos tido muitas mortes e que temia mais quedas.
- Nosso trabalho clandestino conseguiu realizações fantásticas, talvez únicas no mundo, como atuar politicamente por dez anos na mais rigorosa e inclemente clandestinidade, como tirar cem números clandestinos do jornal Voz da Unidade e distribuí-los por um país continental como o nosso.
- No entanto, não podemos afirmar que as quedas de quase todo o Comitê Central, na proporção em que ocorreram, eram inevitáveis: a realidade é que nós não avaliamos suficientemente a evolução da repressão, não refinamos nossos métodos e cometíamos frequentes facilidades. Todos nós da direção tivemos responsabilidade nas quedas.
- Claro, esta responsabilidade era tanto maior quanto mais decisiva a função que cada um de nós desempenhava e, em decorrência, sua possibilidade real de imprimir métodos mais rigorosos de trabalho levando mais em conta a advertência clara e formal do velho companheiro Dinarco Reis, que nos preveniu “que a ditadura passara a concentrar todos os esforços no sentido do cerco e aniquilamento da direção do Partido”.
- Com certeza, nenhum de nós, individualmente, foi a causa principal das quedas no Partido Comunista Brasileiro; esta foi a ação dos órgãos de repressão, que dispunham de mais dinheiro do que nunca, de gente preparada até por serviços estrangeiros de informação e, neste período, consideravam estratégico concentrarem seu trabalho em aniquilar a nossa Direção; atingirem este objetivo criminoso foi muito facilitado por terem conseguido transformar um membro da direção, certeza que só tivemos em 2016, em um agente da repressão.
- O resgate de Dias aconteceu logo após o golpe militar na Argentina, com imediatas prisões e cassações de milhares de democratas e o assassinato de centenas. Sentia-me, até certa medida, seguro, pois me apresentava como turista com recursos: hospedava-me no melhor hotel de Buenos Aires, o Sheraton, só viajava em primeira classe e, quando indispensável, informava que estava selecionando empresas argentinas para fazer investimentos. Esta cobertura, no entanto, não resistia a uma permanência prolongada.
- É importante registrar que, após o resgate de Giocondo Dias, tivemos duas baixas fatais, como consequência da ação: quando os militares da ditadura na Argentina souberam da participação de argentinos na operação, assassinaram o companheiro motorista e seu filho.
- Empenhei-me no resgate, com o apoio de camaradas do PC argentino, por considerar fundamental que ele integrasse o trabalho de direção e do Comitê Central. A recepção do Dias ao chegar em Moscou foi extraordinária; parecia um chefe de Estado chegando, com comissão da Direção do Partido soviético na porta do avião.
- Em relação ao “caso Salles”, Marly Vianna, única pessoa que o Comitê Central soube que esteve com Victória Monnof, disse que esta lhe teria pedido uma quantia em dinheiro e um passaporte. Disse também que esta lhe revelara que traficava drogas. Em nenhum momento, deu ao Comitê Central a informação de que teria alguma prova de que a argentina teria sido vista portando, usando ou comerciando drogas. E concluiu que, como a Victoria lhe teria sido apresentada por mim, eu também deveria estar traficando ou planejando traficar drogas.
- Realizou-se então uma reunião do CC para tratar o que teria resultado em uma mudança essencial na linha política do VI Congresso e a correspondente substituição do Comitê Central por uma comissão especial, por conta do que ficou conhecido como “caso Salles”.
- A reconstituição do que, exatamente, foi tratado e apresentado como argumento nesta reunião se tornou possível, em todos seus detalhes, por um cuidado do companheiro Prestes e de sua família, que guardou todas as gravações desta reunião.
- Nada, além desta suposta conversa entre as duas, foi apresentado como prova das acusações. Está nas gravações a pergunta que lhe fiz: “Nos quatorze anos que tivemos casados você me viu tendo qualquer contato com drogas, ou conheceu algum amigo meu que tivesse qualquer contato deste tipo?” Ela respondeu: “Não, não vi.” Disse eu, então: “Não sou advogado da moça, nem conhecedor de sua vida, mas, nas poucas vezes em que a encontrei, nunca tive qualquer evidência que a Vitoria tivesse alguma dependência ou qualquer relação com drogas. Soube pela Marieta que a Victoria tinha tido um namorado que teria alguma relação com drogas, que nunca tive a curiosidade ou preocupação em saber qual. Na função de tanta responsabilidade em que estava, foi um erro eu não ter suspendido imediatamente qualquer possibilidade de contato com a Victória.” Reconheci publicamente este erro.
- Nos debates na reunião, o CC entendeu que o ônus da prova caberia à acusação e que eu não poderia ser responsabilizado por qualquer assunto que, supostamente, Victoria e Marly tenham conversado.
- Por ampla maioria da direção, 17 votos a 4, o Comitê Central votou contra estas medidas. Marly e Anita Prestes, que iniciaram este processo e que convenceram o camarada Prestes, se abstiveram na votação.
- Pouco antes da reunião, o camarada Dimitri, que era o contato dos soviéticos conosco, aproveitou um encontro com Salomão Malina e eu, juntos, para dizer que os soviéticos não se envolveriam em nossos assuntos internos, mas que seria formidável se encontrássemos uma forma de convivência tranquila – Dias, Malina e eu. Textualmente: ”Da mesma forma que respeitamos o camarada Malina, respeitamos os camaradas Dias e Salles”.
- Fui absolvido, pois as acusações não tinham fundamento. Acabei afastado do trabalho de direção, duramente criticado, mas mantido, com plenos direitos, por mais dez anos no Comitê Central. Claro que o Partido e o Comitê Central tinham motivos para criticar minha participação na direção e é compreensível que tenham feito críticas.
- Acredito que muito mais motivos tenho eu próprio para registrar erros e deficiências que se apresentaram em meu trabalho. Em primeiro lugar, uma visão limitada sobre a questão da democracia, dentro e fora dos países do socialismo real. Deveríamos ter tentado antes instalar uma “cabeça de ponte” da direção no Brasil; e outras sérias. No entanto, a modéstia não me obriga a achar que mereci críticas mais rigorosas que direções que me antecederam ou foram posteriores.
- Em nenhum terreno minha gestão foi um desastre ou irresponsável. Múltiplos foram os contatos realizados dentro (em nome da direção, por dois companheiros que estavam no exterior) e fora do Brasil sem provocarem, em consequência, nenhuma queda. Algumas ações de resgate significativas foram realizadas, de forma muito responsável.
- Nenhum contato paralelo, fora das linhas de direção previstas nos Estatutos, foi estabelecido. A comissão do Comitê Central que examinou as contas nestes anos no exterior não verificou a existência de discrepância de um centavo em relação às despesas informadas. Embora estivéssemos no exterior, nas diversas reuniões da Direção não nos afastamos da linha política do VI Congresso.
- Giocondo Dias e todo o Comitê Central se portaram com imensa dignidade comigo. Não deixaram que fosse vítima de coisa nenhuma. E o camarada Prestes, em nenhum momento, apresentou, publicamente, a posição do Comitê Central em não aceitar minha expulsão como motivo para seu rompimento com o Partido. Exatamente pela sua
- Mas a questão realmente importante para a vida do Partido, ali tratada, não foi nada disto, de “caso Salles”! Como a vida posterior se incumbiu de provar, esta reunião significou um rompimento traumático e prejudicial com parte da tradição e da cultura do Partidão.
- Depois destes acontecimentos, o camarada Prestes nunca mais participou de uma reunião do Comitê Central, na prática deixou de exercer suas funções de Secretario Geral e é notória sua carta defendendo a visão política de seu grupo e rompendo com o PCB.
- Existia um equilíbrio dinâmico no Comitê Central, que exigia muito debate, entrechoques e compromissos — criadores e sinais de vida, que permitiam ao Partido comportar em seu seio todo o Comitê Central: o Prestes, o Dias, o Armênio e todos os demais companheiros que apoiavam uma ou outra tendência e que aportavam indispensáveis contribuições. Este debate de opiniões gerou nossa política que foi consagrada pela vida e teve importante papel no combate à ditadura até sua derrota.
- Isto era o nosso Partidão! Aí estava boa parte de sua força e tradição. E era possível continuar assim, com imensa vantagem para o processo de redemocratização, para a vitória de nossa política, e para o Partido chegar à derrota da ditadura como uma força política muito expressiva! E continuo convencido de que era não só desejável, como perfeitamente possível preservarmos este debate sem excluir nenhum tendência. Por iniciativa própria, nenhum dos principais protagonistas deste choque, inclusive o Prestes, levaria a divergência até o rompimento, como não levaram por mais de trinta anos.
- Ganharia imensamente o Partido se, como teria sido possível e normal ocorrer, o Prestes continuasse como membro do Comitê Central do Partido (como Presidente de Honra?), aí contribuindo com a defesa de suas opiniões, e o Dias coordenando o trabalho.
- Se, posteriormente, esta ou daquela corrente de pensamento do Partido se afastasse de nosso convívio, isto teria sido como resultado de um amplo debate democrático de princípios e não o resultado de um choque com muitos aspectos de artificialidade, provocado pelos interesses de um pequeno grupo. Para o trágico rompimento, pesou decisivamente, o pensamento político contrário à linha política do VI Congresso de alguns funcionários e professores soviéticos, e, principalmente, o despreparo político e a intolerância de um pequeno grupo próximo ao Prestes que o levou a ter um comportamento absolutamente diferente do que tivera durante toda sua vida: romper com o PCB, ficando contra a esmagadora maioria de nossa Direção e a opinião clara da direção do Partido soviético.
- A violação proposta da linha do VI Congresso e de seus Estatutos tornava impossível para o Comitê Central aderir à perspectiva apresentada nesta reunião e, posteriormente, confirmada na Carta aos Comunistas do Prestes. Nestas circunstâncias, com certeza, o CC fez tudo o possível para evitar o rompimento.
- Com certeza, a liquidação física de grande número de dirigentes provados do Comitê Central e este rompimento que dividiu o Partido iniciaram o processo que levou ao fim do glorioso Partidão.
«Acredito que muito mais motivos tenho eu próprio para registrar erros e deficiências que se apresentaram em meu trabalho»
«Prestes, em nenhum momento, apresentou, publicamente, a posição do Comitê Central em não aceitar minha expulsão como motivo para seu rompimento com o Partido»
Foto: José Salles
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