Brasil-China-Debate. A guinada neoconservadora na China

 

“Hoje, a tragédia do Grande Salto Adiante está se repetindo como comédia no Grande Salto capitalista modernizador” – Slavoj Zizek

 

 Slavoj Zizek 

A campanha chinesa contra as grandes corporações e a abertura de uma nova bolsa de valores em Pequim dedicada a promover pequenas empresas, podem ser vistas como movimentos recentes contra o corporativismo neofeudal, ou seja, como tentativas de trazer de volta um capitalismo “normal”. A ironia da situação é evidente: um regime comunista forte cujo poder é ameaçado por grandes corporações busca aliados entre pequenos capitalistas “normais”… É por isso que acompanho com grande interesse os escritos de Wang Huning, membro do Comitê Permanente do Politburo do Partido Comunista da China e diretor da Comissão Central de Orientação sobre a Construção da Civilização Espiritual.

Wang se autodenomina um neoconservador. Ora, o que significa isso? Se confiarmos no que diz nossa grande mídia, Wang é mente por trás dessa nova orientação da política chinesa. Quando li que uma das medidas recentemente impostas pelo governo chinês era a proibição do “996”, devo admitir que minha primeira associação foi sexual. Para bom entendedor, “69” refere-se a uma conhecida posição em que um casal realiza sexo oral simultaneamente. Assim, eu imediatamente associei “996” a alguma prática mais pervertida que estaria se espalhando na China envolvendo dois homens e uma mulher (já que há uma falta de mulheres lá). Depois fui aprender que “996” refere-se, na verdade, a um ritmo de trabalho brutal imposto por muitas corporações na China (uma jornada de trabalho das 9h às 21h, 6 dias por semana). Em certo sentido, no entanto, eu não estava totalmente errado. A campanha em andamento na China tem um objetivo duplo: promover mais igualdade econômica, incluindo melhores condições de trabalho, e eliminar a cultura popular ocidentalizada de sexo e consumismo.

O que significa, portanto, ser um neoconservador nas condições atuais? Em meados de outubro de 2019, a mídia chinesa lançou uma ofensiva promovendo a alegação de que “as manifestações na Europa e na América do Sul seriam um resultado direto da tolerância do Ocidente em relação às manifestações de Hong Kong”. Em um comentário publicado no Beijing News, o ex-diplomata chinês Wang Zhen escreveu que “o impacto desastroso de uma ‘Hong Kong caótica’ começou a influenciar o mundo ocidental”, ou seja, que os manifestantes no Chile e na Espanha estariam de alguma maneira seguindo o exemplo de Hong Kong. Mais ou menos na mesma linha, um editorial do Global Times acusou os manifestantes de Hong Kong de “exportarem revolução para o mundo”:

O Ocidente está pagando o preço por ter apoiado os motins de Hong Kong, que rapidamente acarretaram explosões de violência em outras partes do mundo – um prenúncio dos riscos políticos que o Ocidente não tem condições de administrar. […] Existem muitos problemas no Ocidente e há todo tipo de correntes ocultas de insatisfação latente. Muitas delas acabarão se manifestando da mesma forma que ocorreu com protestos de Hong Kong. […] A Catalunha é provavelmente apenas o começo.

Embora a ideia de que as manifestações em Barcelona e no Chile estariam sendo pautadas por Hong Kong seja um tanto forçada, essas explosões trouxeram à tona um descontentamento geral que obviamente já estava lá, à espreita, apenas esperando um gatilho contingente qualquer para eclodirem – tanto que mesmo quando a lei ou medida particular era revogada pelas autoridades, os protestos continuaram. A China Comunista joga discretamente com a solidariedade daqueles que estão no poder em todo o mundo contra populações rebeldes, alertando o Ocidente a não subestimar a insatisfação popular latente no interior de suas próprias fronteiras – como se, por baixo de todas as tensões ideológicas e geopolíticas, todas essas potências compartilhassem um mesmo interesse básico em manter o poder… Mas será que essa defesa funcionará?

Wang é um pensador autêntico. Definitivamente não se trata de uma versão chinesa de um Aleksandr Dugin, e não devemos descartar suas medidas como uma mera desculpa para impor um controle total do Partido Comunista sobre a vida social do país. Wang está respondendo a um problema real. Trinta anos atrás ele escreveu um livro intitulado América contra a América, que elencava didaticamente os antagonismos presentes no estilo de vida estadunidense, incluindo seus lados mais sombrios: desintegração social, falta de solidariedade e valores compartilhados, consumismo niilista e individualismo… Aqui, vale dizer, o populismo de Trump é uma falsa saída: trata-se de um clímax da desintegração social porque introduz a obscenidade no discurso público, privando-o assim de sua dignidade – algo não só proibido como totalmente inimaginável na China. Definitivamente nunca veremos um alto político chinês fazendo o que Trump faz publicamente: se gabar do tamanho de seu pênis, imitar os sons orgásticos de uma mulher… O medo de Wang era de que a mesma doença pudesse se espalhar para a China. Ora, é exatamente isso que parece estar acontecendo agora no nível popular de cultura de massas, de modo que as reformas em curso são uma tentativa desesperada de combater essa tendência.

Mais uma vez: será que isso vai funcionar? Sou um tanto cético.

Sou um tanto cético

Em primeiro lugar, vejo na forma pela qual a campanha em curso está sendo feita uma tensão entre conteúdo e forma: o conteúdo (a promoção de valores estáveis que mantêm uma sociedade unida) é imposto na forma de uma mobilização que é vivenciada como uma espécie de estado de emergência imposto pelo aparelho de Estado. Embora o objetivo seja o oposto do da Revolução Cultural, há semelhanças no que diz respeito à forma da campanha. O perigo que vejo é que tais tensões podem acabar produzindo uma descrença cínica na população. De maneira mais geral, a campanha em andamento na China me parece muito próxima do velho procedimento conservador de querer aproveitar os benefícios do dinamismo capitalista, mas buscar controlar seus aspectos destrutivos por meio de um Estado-nação forte responsável por promover valores patrióticos.

Carlo Ginzburg propôs a ideia de que é o sentimento de vergonha do próprio país, e não o amor por ele, que talvez seja a verdadeira marca do pertencimento nacional. Um exemplo supremo desse tipo de vergonha ocorreu em 2014 quando centenas de sobreviventes e descendentes de sobreviventes do Holocausto compraram um espaço de anúncio na edição de sábado do New York Times condenando aquilo que chamaram do “massacre dos palestinos em Gaza e a ocupação e colonização em curso da Palestina histórica”. “Estamos chocados com a desumanização racista extrema contra os palestinos na sociedade israelense, que atingiu um ponto absolutamente intolerável”, dizia o comunicado. Talvez, hoje, alguns israelenses reúnam a coragem para sentir vergonha diante do que Israel está fazendo na Cisjordânia e mesmo no interior do próprio Estado de Israel – não, é claro, no sentido de uma vergonha de ser judeu, mas, pelo contrário, de sentir vergonha pelo que a política israelense na Cisjordânia está fazendo com o legado mais precioso do próprio judaísmo. “Meu país, certo ou errado” é um dos lemas mais repugnantes e ilustra perfeitamente o que há de errado com o patriotismo incondicional. O mesmo vale para a China hoje. O espaço no qual podemos desenvolver esse pensamento crítico é o espaço do uso público da razão. Na famosa passagem de seu “O que é o esclarecimento?”, Immanuel Kant opõe os usos “público” e “privado” da razão: “privado” não refere-se ao espaço individual de alguém em oposição aos laços comunitários, mas à própria ordem institucional-comunal da identificação particular de alguém; enquanto “público” diz respeito à universalidade transnacional do exercício da razão de alguém:

O uso público da razão de alguém deve ser sempre livre, e apenas ele pode produzir o esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão pode porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento. Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado (KANT, 1985, p. 104-105)

É por isso que a fórmula iluminista de Kant não é “Não obedeça, pense livremente!”, nem “Não obedeça, pense e se rebele!”, mas sim: “Pense livremente, exponha seus pensamentos publicamente, e obedeça!” O mesmo vale para os que duvidam das vacinas: debata, publique suas dúvidas, mas obedeça aos regulamentos assim que o poder público os impuser. Sem tal consenso prático, a tendência é nos tornarmos uma sociedade composta de facções tribais – o que já está acontecendo em muitos países ocidentais hoje. Além disso, sem o espaço para o uso público da razão, o próprio Estado flerta com o perigo de se tornar apenas mais uma instância do uso privado da razão.

Há uma homologia estrutural profunda entre o autorrevolucionamento permanente maoísta, a luta permanente contra a ossificação das estruturas do Estado, e a dinâmica inerente do capitalismo. Penso que Wang esteja silenciosamente ciente disso. Sinto-me tentado a parafrasear aqui a sacada de Bertolt Brecht que compara o roubo de um banco à própria fundação de um banco: afinal, o que são as explosões violentas e destrutivas de um Guardista Vermelho enredado na Revolução Cultural em comparação com a verdadeira Revolução Cultural, a dissolução permanente de todas as formas de vida exigida pela reprodução capitalista? Hoje, a tragédia do Grande Salto Adiante está se repetindo como comédia no Grande Salto capitalista modernizador: no lugar do velho slogan “uma fornalha de aço em cada aldeia”, temos “um arranha-céu a cada esquina”.

Alguns esquerdistas ingênuos afirmam o legado da Revolução Cultural e do maoísmo em geral ainda age como uma força contrária ao capitalismo desenfreado, refreando seus piores excessos, mantendo um mínimo de solidariedade social. Mas e se no fundo for exatamente o oposto? E se, de uma forma não intencional e por isso ainda mais cruelmente irônica, a Revolução Cultural, com seu apagamento brutal das tradições do passado, no fundo foi o choque que criou as condições para a explosão capitalista em curso? E se a China tiver que ser acrescentada à lista de Naomi Klein de Estados nos quais uma catástrofe natural, militar ou social abriu caminho para um novo surto capitalista?

A suprema ironia da história é, portanto, que foi o próprio Mao quem criou as condições ideológicas para o rápido desenvolvimento capitalista ao dilacerar o tecido da sociedade tradicional. Ora, qual era o seu apelo ao povo, principalmente os jovens, na Revolução Cultural? “Não espere que alguém lhe diga o que fazer, você tem o direito de se rebelar! Portanto, pensem e ajam por si mesmos, destruam relíquias culturais, denunciem e ataquem não só os mais velhos, como também o governo e os funcionários do partido! Se livrem dos mecanismos repressivos do Estado e organizem-se em comunas!” E o apelo de Mao foi de fato ouvido: o que se seguiu foi uma explosão da paixão desenfreada de deslegitimar todas as formas de autoridade, a ponto do Exército ter que eventualmente ser convocado a intervir para restaurar a ordem.

Com a guinada neoconservadora na China, todo um ciclo de política emancipatória se fechou. Em Notas para a definição de cultura, o célebre conservador inglês T. S. Eliot observou que há momentos em que a única escolha existente é entre a heresia e a descrença, quando a única maneira de manter viva uma religião é realizar uma cisão sectária de seu cadáver principal. Lênin fez isso em relação ao marxismo tradicional. Mao fez isso à sua maneira. Ambos fracassaram. Pra que a esquerda ainda tenha alguma chance, é preciso realizar essa cisão sectária.

(Tradução: Artur Renzo para o blog da Boitempo.

(Publicado no site A Terra é Redonda)

  • Slavoj Žižek. Professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

PS do colaborador:

 Fotoarte: “Um tanto cético”

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