A barca e os ratos
Ao cheiro do naufrágio, diz-se, os ratos são os primeiros a abandonar o navio. Para este país, seria um exagero falar de navio: a governação mais se assemelha a uma barca furada e a afundar-se aceleradamente. Quanto aos ratos, a velha máxima não deixa de conter alguma verdade: na noite de 7 de Junho, no Hotel Altis, os ratos foram à rua comprar tabaco, foram ver se chovia, foram jogar ao berlinde, foram ocupar-se dos mais diversos afazeres, para não terem de ficar ali a assistir àquela derrocada.
Foram os primeiros a abandonar a barca? Não, essa parte da máxima já não é tão aplicável. Demoraram algum tempo, porque o naufrágio já tinha começado há muito e eles ainda ali estavam, a banquetear-se lautamente. A estes ratos, falecem os sentidos apurados, o olfacto, o ouvido, a esperteza sempre alerta de alguém que luta pelas mínimas migalhas como quem luta pela vida.
Os ratinhos do campo, esses sim, teriam pressentido à distância os primeiros sinais do naufrágio. Mas estamos a falar de ratos da cidade, gordos e anafados. Entre eles contam-se talvez menos ratos de sacristia que no tempo de Guterres, mas sobram, em compensação, os ratos de secretaria, de ministério, de administração, os ratos diplomados, engenheiros, doutores e arquitectos, os ratos banqueiros que são amparados na crise pelo dinheiro do nosso IRS, os artistas da evasão fiscal, da falência fraudulenta, da prescrição de processos e da derrapagem de orçamentos – todos habituados a sentarem-se de perna traçada e a serem servidos de fatias cada vez mais suculentas retiradas ao erário público.
Como podiam estes nababos e sibaritas ter intuído o naufrágio, quando, para eles, a vida é tão bela? A crise económica mundial, disseram-nos durante algum tempo, é dos outros – até descobrirem que a crise económica podia dar jeito como argumento eleitoral – afinal a tormenta também dá jeito ao navegador incompetente, para não se saber quem ou o quê causou o naufrágio. Depois vieram as sondagens, para os tranquilizarem um pouco mais. O problema é que as sondagens, se são encomendadas para efeitos de propaganda, acabam por toldar o entendimento. E os ratos cor-de-rosa continuaram no regabofe, descansados da vida, deles, que é tão boa.
Quando, subitamente, naquela noite fatídica, os ratos se aperceberam que a barca metia água por todos os lados – aí reagiram rápidos como o relâmpago. E tentaram fazer jus à velha máxima que lhes atribui a primazia no abandono, na fuga, na deserção. Demasiado tarde: antes deles, já o eleitorado tinha virado as costas à barca furada, tinha ocupado os poucos salva-vidas disponíveis e tinha-se posto ao fresco.
Restava então aos ratos escaparem sorrateiramente pela porta dos fundos, atirarem-se à água e tentarem nadar até terra firme. Nisso, verdade se diga, têm-se exercitado abundantemente nos últimos tempos (ele foi o Sócrates e a Rodrigues a fugirem dos estudantes da António Arroio pelas traseiras, ele foi o Teixeira dos Santos a fugir dos depositantes do BPP, ele foi o Mário Lino no Altis a mostrar como sabe aprender com os colegas na arte da fuga).
Daqui até Outubro, com a acalmia de lutas sociais tão frequente no Verão, podem ter sorte e conseguir nadar até à praia. E, em Outubro, outros virão, talvez ratos cor-de-laranja, para continuarem a saquear a despensa da barca. E certamente não serão melhores. Mas também não serão piores, por muito que os ratos cor-de-rosa, no meio da sua debandada, ainda tentem agitar espantalhos e papões. Papões são todos eles, rosas e laranjas, ratos-papões que serão postos em fuga quando o exemplo da luta dos professores frutificar a todo o país e se tornar o eixo verdadeiro de construção duma alternativa política.